quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Mais tons de Cain


A fim de disfarçar o... serviço, vesti Anna com a única vestimenta púrpura que ela tinha. E o velório transcorreu com calma, nas presenças minha, de Joanna, e de Tomasz Czernoglawski, o padre designado para fazer os ritos de Natal na nossa região. E que começou suas atividades por lá, de maneira nada festiva.
  
Como nem só de morte se faz a vida, logo depois, Joaninka recebeu o batismo. Mas algo começou a me incomodar , e falei a Tomasz:

  
- Sempre ouvi falar em um Deus consolador, mas não vi o consolo dele nos momentos finais de Anna. Fui eu que a consolei, e o que mais me anima neste momento é Joanna. Se não é o papel deste tal de Deus, nos consolar nos piores momentos, então ele pode, no máximo, ser alguém justo, que recompense os bons e puna os maus. Mas não tem como ele ser um Deus amoroso.
  
- Te entendo perfeitamente. Mais do que você imagina... – então, ele pegou uma bola negra, misturou aquela bola a alguns pedaços de erva, e acendeu algo parecido com um graveto. Para minha surpresa, ele inspirou a fumaça que saía daquele graveto, e depois de alguns minutos parecia tomado de grande tranquilidade, a despeito de seus olhos estarem cor de sangue.

- Mas, admita Jan, você teve sorte. Ou a proteção dos deus...aham! de Deus.

- Dos o quê?
  
- Jan, vocês tem a paz das montanhas. Porém, nós, da planície, não tivemos a mesma sorte quando chegaram aqueles seres sub-humanos a quem chamam de mongóis. Eu, em verdade, não tive nem tua sorte, de ter o próprio pedaço de chão. Estava eu lá, nas terras de meu senhor, aliás, de meu antigo senhor, colhendo os últimos frutos de algum outono. Fazem 5 anos. E de repente aqueles cavaleiros sanguinários chegaram. Fora eu, nenhum polaco ao meu redor ficou de pé. Tive sorte de entrar logo na floresta, onde os galhos das árvores tornariam mais trabalhosa a perseguição dos cavaleiros mongóis. Adoraria te-los enfrentado, mas naquele dia eu estava pouco inclinado ao martírio. Então fui até minha casa. E chegando lá... – alguns segundos de silêncio e lágrimas brotaram em seus olhos neste instante – encontrei ela morta, o ventre rasgado, e... surpresa das surpresas: ela estava grávida. Cortaram até mesmo a cabeça daquele bebê ainda tão pequeno... Então gritei com todas minhas forças. Sim, eu queria ser morto por aqueles déspotas e seus cavalos, pois agora nada mais me restava. Para meu desapontamento, ninguém apareceu. Então, me joguei no rio mais próximo. Fiz questão de inalar a água, para que meu sopro de vida logo fosse de volta para Deus. Ou... para algum patrono dos mestres das ervas. Porém, depois de algum tempo, me vi numa cama, alguns homens de túnicas à minha volta. Eram pessoas que estavam estudando para serem sacerdotes católicos. Como eu me tornei. Devo dizer que a vida de estudos vez por outra tinha seus refrigérios... como visitas solitárias de monjas que moravam perto de nós. Monjas que, diga-se de passagem, eram tão católicas quanto... os mestres das ervas. Sim, os mestres das ervas, sob a carapuça de tementes apenas a Javé, nunca deixaram de ser seguidores dos deuses de nossos ancestrais. No mais recôndito do bosque, ainda são celebrados Rod Criador e Triglav Rei. E fora aquelas doces monjas que, aproveitando-se da demência senil da madre superiora do monastério, que me apresentaram o culto ancestral. Aliás, Jan, devo te dizer que, nas regiões mais ermas, ligadas à civilização apenas por caminhos intransitáveis, Javé ainda é um nome estranho. Mas, ao menos pararam de sacrificar pessoas, algo que sempre execrei no culto ancestral. E, modéstia à parte, eu e minha amicíssimas monjas fomos os responsáveis por encerrar esta barbárie.
  
- Então você serve a 3 senhores?
  
- Não Jan, vamos com calma. Rod e Triglav são apenas outras faces daquilo que os cristãos chamam de Deus. Aliás, podemos comparar Rod a Javé, e Triglav a Jesus. Mas, a primeira festa que fui, foi em honra de Potala... jamais me esquecerei daquela festa. Foi lá que tomei consciência de que, por pior que tenha sido a perda de minha esposa e de meu futuro rebento, a vida teria que continuar. E se eu não tomasse as rédeas, ficaria arrastando corrente. Então decidi, sob as bênçãos do hidromel, me entregar aos rituais... que duraram uma noite inteira. Aliás, que rituais! E é para lá que eu vou, depois de celebrar a missa do Galo em sua aldeia. Se você não tivesse Joanna para cuidar, te convidaria para estes sabororos rituais... que rituais!
  
- Obrigado por sua gentileza Tomasz, mas vou ficar aqui, cuidando de Joaninka. Neste momento, a capela está gelada como o vento nordeste, e... não quero que Joaninka conheça tamanho frio tão cedo!
  
- Tudo bem Jan. Mas agora tenho realmente que ir. Que Deus ou os Deuses te protejam! Fica à sua escolha! – e sorrindo se foi.

  

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3 comentários :

Hugo Marcelo disse...

Grande Luciano,

Gostei muito mesmo dessa postagem.
Estou curiosíssimo pra saber a importância desse padre na história de Cain.

Att,

Hugo Marcelo

LuluBros disse...

Isso aí, cinquenta tons de Cain! :)
Valeu pelo feedback Hugo! E pode ter certeza que o padre vai ter um papel no lance. ;)

Hugo Marcelo disse...

Legal...
:-)

Hugo Marcelo