E Joaninka cresceu em estatura, graça e sabedoria diante de Deus
e dos homens. Bem... quanto à sabedoria, frequentemente devendo. Num final de
tarde de outono, ela estava brincando com outras crianças da aldeia que ficava
logo abaixo do meu humilde sítio. E eu, cortando um pinheiro para ter lenha pro
inverno da minha região. E do rigor do inverno já falei acima. O rigor do
inverno era do mesmo tamanho da moleza da cabeça de minha filha. Para facilitar
as coisas, eu gostava de rebocar a árvore inteira para perto de casa, onde eu
cortava a lenha e já empilhava de uma forma que facilitasse a secagem da mesma.
E foi assim que fiz com aquele pinheiro em
12 de outubro de 1195. Amarrei 2 cavalos à arvore, montei num deles, e
dei ordem de partida morro abaixo, em direção à casa.
Um grito, curto e horripilante. Imediatamente dei ordem aos
cavalos que parassem. Olhei para trás. Em meio a galhos e rochas, ela... ou...
o que restou dela. Imaginei que ela tenha se despedido mais cedo dos
amiguinhos, e, ao ver que eu ia rebocar mais uma árvore, tivesse achado uma boa
ideia subir no tronco como se ele fosse um trenó. Porém, ao chegar mais perto,
naquele início de noite, vi que havia marcas nela, como se uma víbora do
tamanho de um urso a tivesse picado. Porém, tais marcas não eram nos
calcanhares...
Então, a velha lenda era verdade... por baixo da superfície,
algumas coisas não tinham sido varridas pelo sangue de Cristo. O inferno estava
mais vivo do que nunca, e toda minha austeridade e continência tinha sido em
vão!
Respeitei Anna como a mais delicada flor até o momento de nosso
glorioso encontro sob a manta de lã... cuidei de Joanna como se fosse a própria
Anna, rediviva. Deixei de provar outras flores para ter frutos com o doce mel
de Anna, e tive, mas por pouquíssimo tempo. 25 anos de pureza, ceifados em 2
golpes. O primeiro tinha sido naquele natal maldito... de 1189.
Gritei o mais forte que pude... mas o vento não ajudava a levar
meus gritos à aldeia. Tudo aquilo aconteceu numa terça-feira... e apenas domingo
poderia ser feito algo como um velório cristão para Joaninka. E o clima ainda
não estava tão frio para que ela não se corrompesse nesses 5 dias. Mas, mais do
que o tal enterro cristão, eu queria era falar com Tomasz...
Mas, enfim, escavei num pedaço de floresta perto de casa, fiz
uma prece pedindo ao Criador que desse um bom lugar a ela. Seja lá quem fosse
esse criador, Javé ou Rod. Nada avisei aos avós, para que eles não pensassem na
ideia de desenterrar o corpo e constatarem eles mesmos a causa da morte. Eu
tinha esquecido de contar este ponto, mas os ferimentos devido à queda eram
arranhões comprados ao produzidos pela mordida, que certamente nem um urso
poderia produzir...
Tomasz provavelmente reparou que eu não estava naquela reunião a
que chamam de missa, e foi ter comigo em minha agora solitária casa.
- Jan... o que você faz no estábulo... ahn... desculpe.
- Calma, estou quase terminando... pronto...
Dei um beijo de despedida em Krulowa, que tinha sido uma fiel
companheira desde o fatídico Natal de 1189. E fui ter com Tomasz...
- Jan, a menina nunca presenciou esses... encontros?
- Sim, e ficou curiosa observando um desses encontros, sem que
eu percebesse. Alma de Verbena. Outras crianças achariam profundamente
estranho... Expliquei a ela que um dia, quando ela fosse mais velha, chegaria o
momento de ela se encontrar dessa forma com alguém. Mas nunca chegará.
- E as confraternizações florestais, caríssimo Jan?
- Mas você veio me encontrar de dia caro Tomasz... (risos),
claro que de dia a companhia não poderia ser outra senão Krulowa. Não quero
passar por homem desonrado diante da aldeia rodando mais de mão em mão do que
caneco de cerveja ou hidromel... e nem gostaria de dar esta fama às lindas
“flores” que crescem e vicejam morro abaixo... mas de noite... bem, de segunda
a sexta o descanso chamava, mas aos finais de semana... A menina aguardava o
Shabat com expectativa... ao por do sol íamos ao recôndito do bosque, onde
grutas abrigam a chama dos rituais. Ela participava das danças mais... ecumênicas,
com vigor e alegria. Mas mais tarde da noite, ela e as outras crianças
participantes dos rituais se entregavam aos braços de um deus que, aqui em
Constantinopla, fui conhecer como Morfeu. E era o momento da confraternização
mais profunda...
Continuei:
- Mas a verdade é que, prazer e confraternização à parte, nunca
entendi o mistério do sofrimento, da morte. Nem na visão cristã, nem na visão
antiga. Me embriago nestas confraternizações para esquecer, ainda que por
algumas poucas horas, todo este mistério. Afinal, nem Rod e Triglav salvaram
Anna.
- Foi necessário que os mestres falhassem naquela prova, para
que eles não se achassem melhores do que aquela a quem pretendiam curar. Mas
nem aquela prova foi suficiente para eles. Eles foram localizados recentemente
próximo a uma clareira na mata que fica... venha, vamos lá fora, ao luar dá
para ver a clareira.
- Mas... é exatamente a clareira onde eu estive na terça, e onde
Joaninka foi morta!
- Sim... será que poderíamos desenterra-la, e ver como está a
pureza dela? Ao que me consta, os mestres estavam de calças arriadas quando
foram encontrados.
- Não é necessário... agora entendi. E eles, simplesmente foram
mortos?
- Fique feliz pelo modo com a menina foi morta. Eles tiveram
suas imundas ferramentas devidamente cortadas, e tiveram braços e pernas
estraçalhados. Interessante que suas gargantas foram sutilmente cortadas,
talvez para que seus gritos de dor não ecoassem pela floresta. Após este corte
na garganta, tiveram braços e pernas estraçalhados.
- Entao... o ser que matou a eles, pensou que seria melhor que
ela morresse, do que conviver com tamanha desonra?
- Sim. Uma coisa é entregar as... flores, a alguém que queira
alegremente se confraternizar. Não há nada de errado nisso. Mas eu penso que eu
beijaria o ser que matou Joaninka, caso eu tivesse passado pelas mãos daqueles
mestres antes. A culpa não é de Javé-Rod, nem de Cristo-Triglav, eles fizeram o
possível para quebrar o orgulho daqueles mestres da curra, e não da cura. Não
foram poucos, nas aldeias da região, que estranharam o fato de suas filhas não
terem manchado os lençóis após o casamento. Agora que os mestres morreram,
constatamos que... seus pais confiaram
as meninas a eles enquanto elas estavam gravemente enfermas. E... tudo se
encaixa.
- E Anna?
- Nao creio que ela esconderia de você, uma desonra que ela
tivesse sofrido sem culpa dela. Mas, penso que você ainda pode falar com sua filha. Quiçá com Anna, se ela
tiver sido mordida também.
- Como?
- Palpite apenas. Te ajudo com o machado, enquanto você segue
com a enxada. Tudo bem, para mostrar que estou levando a sério meu palpite,
desenterro Anna, cuja cova deve ser maior.
Logo ao amanhecer... Anna tinha seguido seu destino. Ossos
apenas. Já Joaninka, estava intacta. Como se estivesse apenas dormindo.
- Tomasz, qual é a explicação para isto?
- Monta guarda por aqui ao por do sol que acaba de nascer... por
trás destas densas nuvens de neve. E pegue este bastão... pode precisar.
Um comentário :
Grande Luciano,
Muito legal esse texto.
A tragetória de Cain foi, e é, algo bastante... diferente.
Att,
Hugo Marcelo
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